Bitters: a medida certa de amargor em um coquetel

⍟ Ingredientes-chave da coquetelaria, os bitters surgiram como tratamento para diversos males. Saiba como são preparados e a melhor formas de utilizá-los.

Uma gota a mais ou a menos pode fazer a diferença quando se trata de bitters. A preparação é complexa. Envolve inúmeras espécies de folhas, raízes, frutas e outros ingredientes esmagados e macerados em álcool. O trabalho é custoso, mas vale a pena pela possibilidade de conferir um toque único de complexidade a um coquetel.

Em uma comparação simples, pode-se afirmar que os bitters tem para a coquetelaria o mesmo peso dos temperos para a gastronomia. Uma pitada é capaz de corrigir o amargor de uma bebida, equilibrar seu sabor, deixá-la mais ou menos doce e até adicionar um aroma especial. Mas se há exageros, também pode tornar intragável um coquetel.

Diante de tantas nuances dentro de um pequeno frasco, conhecer sua história é essencial para entender como empregá-los.

É difícil apontar o primeiro bitter preparado na história. Há indícios de que seus primeiros aspirantes tenham surgido ainda no Egito Antigo, quando ervas medicinais eram embebidas em vinho e armazenadas para serem consumidas como remédios. No século XVI, eram preparados com folhas e raízes com o propósito de amenizar disfunções estomacais, facilitar a digestão e até combater pestes entre tripulações de navios.

Pelo fato dos destilados serem muito utilizados como absorventes de características organolépticas da principal fonte de medicamento – os botânicos -, nesta época, quase toda medicação era alcoólica. Outras bebidas, como o gin, por exemplo, também foram criadas “acidentalmente”, durante a pesquisa de medicamentos naturais.

PRIMEIRAS APARIÇÕES

Oficialmente, o primeiro bitter de que se tem registro é o “Elixir Magno” ou “Elixir Stoughton”, criado na década de 1690 pelo apotecário londrino Richard Stoughton para aliviar problemas digestivos. Em livros antigos de coquetelaria, há uma série de receitas diferentes para este bitter. Mas seus dois principais ingredientes são velhos conhecidos: genciana e laranja.

Contudo, não se sabe ao certo quando os bitters migraram das prateleiras das farmácias para os bares. Apenas que os coquetéis foram se desenvolvendo à medida em que os spirits foram sendo acrescentados aos remédios para torná-los mais saborosos. Tanto que, via de regra, os drinks são feitos com açúcar, água, spirit e bitters. Essa definição foi dada pela primeira vez pelo editor do jornal nova-iorquino The Balance and Columbian Repository, em 13 de maio de 1806.

Citado diversas vezes como o “pai do cocktail” na história da coquetelaria, o apotecário de família francesa nascido no Haiti e radicado em Nova Orleans, Antoine Amédée Peychaud, talvez não tenha sido seu criador, mas parte importante da história dos bitters passa por suas mãos. Muitas fontes divergem sobre a data em que teria nascido e chegado aos Estados Unidos. Recentemente, uma pesquisa feita um parente distante do apotecário, encontrou vestígios de que Peychaud teria nascido em 1803, durante o processo de independência haitiano (ou San Dominique, à época). Se seu obituário publicado no jornal The New Orleans Bee afirma que morreu em 1883, com 80 anos, seria impossível ter criado e difundido uma receita que chegasse tão rapidamente a Nova York a tempo de ser citada em um jornal local.

Teorias à parte, sua receita original de bitters foi lançada em 1830. Peychaud costumava servir drinks de cognac, açúcar e várias especiarias a seus colegas em pequenos copos ou egg cups, também chamados de cocquetier. Doce e aromática, logo ficou famosa nos Estados Unidos. Hoje, é ingrediente indispensável no preparo do Sazerac.

Durante o restante do século XIX , a produção de bitters se aperfeiçoou e surgiram outros produtores ao redor do mundo, em países como Trinidad e Tobago, Inglaterra, Itália, França e Alemanha. Muitos dos produtos criados nesta época permanecem em destaque até hoje, com receitas mantidas em completo segredo.

“É um licor estimulante composto de qualquer tipo de bebida espirituosa (destilado), açúcar, água e bitters”. Esta foi a resposta do editor do jornal à pergunta: o que é um cocktail?

DIGESTIVOS E AROMÁTICOS

A variedade de bitters existentes hoje é um dos grandes trunfos da coquetelaria. Há uma série de marcas e tipos da bebida disponíveis no mercado que podem ser servidos de formas diferentes, de acordo com o resultado que se espera alcançar.

Eles costumam ser divididos em dois grupos: potáveis e não-potáveis. O primeiro pode ser bebido como outros spirits (também são chamados de amaros); o segundo, por outro lado, é muito concentrado e amargo – deve ser saboreado em pequenas doses.

Uma coisa é certa: a potência do amargor de um bitter pode ser percebida por uma simples observação. Geralmente os menores frascos contêm os bitters mais concentrados e fortes; já as garrafas maiores costumam ter os menos potentes.

Conforme o sabor desejado, a dose de bitter pode variar de um dash com poucos mililitros até um volume que o torne a estrela do cocktail. Em alguns drinks, poucas gotas são suficientes para conferir um aroma agradável de laranja ou chocolate, por exemplo, sem acrescentar volume. Em outras ocasiões, a bebida pode vir acompanhada de tônica e ter um propósito mais leve e aperitivo.

Fato é que os bitters têm a capacidade de estimular os cinco sabores identificados pelas papilas gustativas: doce, salgado, amargo, azedo e umami. Este último é responsável pela sensação de água na boca, deixando um gosto duradouro. Ele apenas ressalta o sabor dos alimentos.

TOQUES DE VERSATILIDADE

A característica mais marcante dos bitters, segundo o mixologista da Pernod Ricard Brasil João Morandi, é a capacidade de criar uma infinidade de sabores para o mesmo coquetel.

“Alguns lances de bitters podem transformar o cocktail em algo maravilhoso e criar uma complexidade muito interessante. E quando falo em complexidade, são camadas reais de sabores que aparecem e harmonizam para dar elegância ao drink”.  

Após experimentar centenas de bitters diferentes, Laércio Zulu se sentiu confiante para comercializar suas próprias criações artesanais (Foto: Léo Feltran)

O também mixologista e produtor de bitters, Laércio Zulu, admira o toque de exclusividade que dão à coquetelaria.

“Vejo-os como agentes de aroma, equilíbrio, que dão aquele toque especial. Dessa forma, dependendo da aplicação, é possível utilizar em qualquer tipo de coquetel. Seu diferencial é a exclusividade que traz às receitas”.

Vale ressaltar que esta alquimia, contudo, deve ser praticada com cuidado. Como se trata de uma classe de bebidas com diversas marcas, cada fórmula vai oferecer características diferentes, como aroma e amargor. Por isso, não existe medida certa. A bebida deve ser utilizada com bom senso e sabedoria.

Laércio Zulu que o diga. Após experimentar diversas marcas pelo mundo, decidiu se aventurar pelas notas amargas de sabor e criar o seu próprio produto. Sua marca registrada, Zulu Bitters. “Percebi que ele tinha potencial após provar inúmeras marcas respeitadas Me senti seguro à ponto de vender através da internet”.

FOLHAS, ERVAS & RAÍZES

Além do destilado em si, uma série de raízes, ervas e frutas pode ser combinada para o preparo de bitters. De acordo com Zulu, eles contém de oito a 12 ingredientes, em média, contando com o álcool base e o açúcar utilizado. Atualmente, porém, muitos outros são empregados, como bacon, ervas finas, frutas típicas e defumação.

Tudo vai depender do tipo de equipamento e conhecimento que o profissional detém“, explica.

O processo de produção requer paciência e dedicação. Primeiramente porque os ingredientes devem ser escolhidos com muita responsabilidade para garantir a qualidade do produto final. O álcool, açúcar e especiarias devem ser macerados e armazenados por dias ou semanas em lugares secos e com pouca luz, de acordo com a receita.

“Os cuidados com higienização são outros ‘100%’ de responsabilidade. Seja com a raiz, a fruta e até o pote hermético da infusão. Só assim garantimos uma longa vida útil do tempero”.

Os bitters aromáticos tendem a ter notas amadeiradas, frutadas mais voltadas para frutos maduros (banana, maçã vermelha e cereja), sabor marcante de raízes e especiarias doces como pimenta jamaica e canela. Seu amargor não é tão intenso.

Já os orange bitters, segundo Zulu, são mais expressivos em um primeiro momento. Têm notas florais, frutas verdes, capim-limão, amargor seco e até adstringente.

Conheça alguns dos ingredientes comumente utilizados na produção de bitters:




Genciana

Sua raiz é utilizada na composição de bitters devido ao forte gosto amargo que possui e estimulante para a produção de saliva. Como erva medicinal, é conhecida por sua eficácia contra problemas estomacais e intestinais.




Cássia

Tem propriedades tônicas e sabor muito amargo. A infusão de suas raízes pode integrar a composição de um bitter.




Cinchona calisaya

Como explicamos na matéria sobre a origem da Gin Tônica, a Chinchona calisaya é uma planta típica da flora peruana e de sua casca é extraída a quinina, com uma série de propriedades medicinais. De gosto muito amargo, era utilizada no combate aos sintomas da malária. Dizia-se que o amargor da bebida ficava na pele humana e também ajudava a afastar os mosquitos. Deve ser utilizada com cuidado, pois altas concentrações de quinina podem ser prejudiciais à saúde.




Zimbro

Um dos principais componentes botânicos do gin, é o fruto da Juniperus communis, planta encontrada mais facilmente no continente europeu. Tem propriedades digestivas, além de combater dores e inflamações.




Angélica

A raiz da planta tem conhecidos poderes medicinais principalmente contra problemas respiratórios e digestivos. Ela pode ser utilizada como um componente de bitter aromático.




Limão siciliano

Não há dúvidas quanto ao poder dos zests de limão siciliano adicionarem um aroma único aos cocktails. Além de serem ótimas guarnições, eles também são ingredientes potentes para a produção de bitters. Cascas de outras frutas, como laranja e limão tahiti ou cravo também são bem-vindas.




Anis

Muito usado para dar gosto e aroma a uma série de drinks, suas sementes também podem ser esmagadas e armazenadas em álcool para compor um bitter.




Outras especiarias

Pimenta, alho, gengibre, hortelã, dentes de alho, salsa, alecrim, canela, sementes de groselha, noz-moscada, coentro, raiz de alcaçuz, melissa e muitos outros ingredientes podem ajudar a estruturar a receita de acordo com o bitter que se quer alcançar.

Para encerrar, o Clube do Barman selecionou uma receita de bitters artesanais que podem dar um toque único a diversos coquetéis:

BITTERS DO CERRADO

Receita do mixologista Laércio Zulu

INGREDIENTES

Casca de 1 limão siciliano
Cascas de 1 laranja bahia
Casca de 1 limão cravo
100 g de uvas passas
300 ml álcool de cereal
200 ml caramelo amargo
50 g casca de laranja seca
10 g cardamomo
30 g raiz de jurubeba
10 g sementes de coentro seco
30 g melissa seca
30 g polpa de buriti seco

MODO DE PREPARO

Reserve um pote hermético com capacidade para 1 litro. Em um pilão, esmague as especiarias secas até chegarem à tamanho uniforme. Adicione as especiarias secas e trituradas ao pote, as cascas frescas, as uvas passas e complete com o álcool. Deixe em infusão por 2 semanas, agitando a mistura todo dia, com intensidade. Após este período, adicione o caramelo ao pote. Mantenha a mistura no pote por mais três dias, agitando diariamente. Por fim, coe a mistura com filtro de papel e distribua em garrafas de bitters ou conta gota.

coqueteleira p

CLUBE DO BARMAN

Plataforma educacional sobre coquetelaria da Pernod Ricard Brasil. Aqui você encontra tudo o que precisa saber para ser tornar um bom profissional. Coquetelaria de qualidade, onde o que mais importa é a venda de produtos de alto padrão ao consumidor final e a opinião que vale é a do Mercado.

8 commentsOn Bitters: a medida certa de amargor em um coquetel

  • Como é esse caramelo amargo?

    • Olá, Cairo! O caramelo, quanto mais tempo no fogo, mais amargo fica, pois o açúcar vai ‘queimando’. Assim, se deseja um caramelo mais doce, não deixe no fogo por muito tempo, mas se deseja um caramelo amargo para o bitters, basta mantê-lo aquecido até ficar bem escuro e grosso (mas não torrado). Continue nos acompanhando. Um abraço!

  • Vi este artigo outro dia e havia também uma receita de bitter de laranja. Por quê foi retirada?

    • Olá, Bruno! Retiramos a receita na edição porque, na verdade, ela era apenas a base de um bitters de laranja, mas sem os bitters!! Então consideramos que seria melhor deixar apenas a receita do Bitters do Cerrado nesta matéria e, então, elaborarmos outra com mais receitas completas de bitters para publicarmos em breve. Continue nos acompanhando. Um abraço e até já!

  • As cascas de limão, laranja bahia e limão cravo deve ser secas? Porque na receita tem também 50g de laranja seca.

    • JOAO MANOEL DIAS PIMENTA

      Também não entendi. Realmente ficou confusa a receita. Além disso, no modo de preparo fala-se em adicionar um certo caramelo que não consta da lista de ingredientes.

  • Podem dar uma listinha de quais coquetéis ficam bons com solução salina ?

    • Claro, Felipe. Todos os sours (cítricos, como o Daquiri, Whisky Sour, Fitzgerald), drinks com café (Espresso Martini, Irish Coffee, Lady Winter, Black Russian, cocktails com chocolate também se beneficiam do uso da solução salina. O sal torna o doce mais doce, o salgado mais salgado, equilibra a acidez das frutas cítricas e ainda quebra o amargor, tornando-o mais amigável ao paladar. Temos uma matéria no site sobre o assunto.

Escreva o seu comentário:

O seu e-mail não será divulgado.

Bem-vindo(a)

Você precisa ter mais de 18 anos de idade para acessar este site. Informe o ano do seu nascimento:

Ao acessar este site, você concorda com nossos Termos de Uso e com nossa Política de privacidade. Não compartilhe nem encaminhe para menores de idade. ©2023 Clube do Barman. Todos os direitos reservados.