⍟ Em entrevista exclusiva ao Clube do Barman, a jornalista detalha sua bem-sucedida jornada à frente do projeto de coquetelaria do Espaço Zebra – híbrido de galeria, ateliê e bar, mantido em parceria com o marido, o artista plástico Renato Larini.
Publicado em 8 de junho de 2017, às 9h.
Há dois anos, o Espaço Zebra – casa, ateliê e QG de Neli Pereira e Renato Larini, no tradicional Bixiga – iniciou seu projeto de coquetelaria: o Apotecário. Com uma proposta inspiradora e dedicada especialmente a proporcionar uma experiência prazerosa aos seus frequentadores, o endereço se transformou num clássico instantâneo entre os balcões paulistanos. Méritos para o casal, que uniu forças e talentos para alinhar cada detalhe, do ambiente acolhedor à concepção da carta de coquetéis, à base de insumos de produção artesanal. “As pessoas se sentem em casa”, comenta, sem esconder o entusiasmo de quem semanalmente pilota uma verdadeira “cápsula do tempo” em plena rotina caótica da metrópole.
Antes de tudo, gostaríamos que você compartilhasse conosco uma “receita” mais do que especial: como se faz para conciliar jornalismo, antiquariato e coquetelaria, ainda mais em rotina de home-office e trabalhando em família?
Neli Pereira: A receita não tem muito segredo: amo o que faço e faço com muita vontade de melhorar, de criar novidades e de sempre ir além. Não me acomodo, procuro sempre sair da minha zona de conforto. Mas a rotina é puxada, é verdade. Em alguns dias trabalho na redação, vou pro Zebra, fecho o bar às duas da matina e às seis já estou de volta na redação. A saúde tem que estar em ordem e não dá pra abusar.
Trabalhar com o Renato, meu marido, é um desafio, porque somos muito diferentes e moramos dentro de um espaço onde recebemos gente diferente todos os dias. Mas encaro como uma experiência, e acho que nossos talentos se complementam. Para tudo isso aí dar certo a receita é estar muito envolvido, ter muito prazer e muita paixão. O jornalismo e a coquetelaria são duas paixões avassaladoras.
Em todas estas áreas, aliás, contar (ou descobrir) uma boa história é fundamental. Imaginamos que isso exerça um considerável fascínio sobre você. Conte-nos um pouco sobre esta vocação, desde sua formação até a maneira como hoje você a exercita nas diferentes funções.
NP: Mais do que as boas histórias, é a conexão com as pessoas que me fascina. No rádio, nos boletins ao vivo, no jornalismo, sempre me interessou o papel da interlocutora, da hostess – “senta, puxa uma cadeira, vou te contar umas coisas e a gente vai trocar figurinha”. No bar, é a mesma coisa. Receber as pessoas e conversar, trocar ideias, aproximá-las do universo da coquetelaria me fascina. E faço isso como se estivesse no ar, ao vivo, ou no balcão do bar. Entendo os dois ofícios de uma forma muito parecida, por incrível que isso possa soar. Eu sou uma anfitriã que gosta de receber, que gosta de pessoas e de suas histórias. Mas que principalmente gosta da possibilidade da troca e de fazer as pessoas se sentirem bem.
Como surgiu seu interesse específico pela coquetelaria? E, especialmente, em receitas que trouxessem sensações de bem-estar ao cliente?
NP: Quando o Renato Larini, meu marido, teve a ideia de fazer o Zebra, me assustou a ideia de abrir as portas da minha casa. Mas, com o tempo, percebi que era dessa intimidade que as pessoas estavam mais carentes, de lugares que fossem de verdade, sem muita intervenção de um investidor que acaba homogenizando tudo. As pessoas queriam verdade, caráter, personalidade, de qualquer forma.
Por isso, quando as trazia para dentro de casa, era comum que eu quisesse oferecer algo caseiro, homemade. E percebi, com o tempo, que somente oferecer vinho e cerveja não cumpria esse papel, eles queriam algo de fato preparado por mim. A gente sempre teve um bar aqui no Zebra, desde 2012. Os coquetéis mais autorais entraram um pouco mais pra frente, em meados de 2013, e foi quando o projeto de coquetelaria do Apotecário veio à tona.
Começamos a chamar um amigo que sabia fazer alguns coquetéis e percebi que o ticket médio aumentava. Então um dia juntei “lé com cré” e disse: Vamos trazer as pessoas aqui para ainda mais dentro de casa! Transformei a sala em bar, o quarto em espaço de mesas e mantive a estética que já era minha: fotos de família, taças garimpadas ao longo dos anos. E decidi que queria fazer coquetéis como elixires, receber com um tempo mais devagar, mais personalizado. Eu queria que as pessoas saíssem daqui se sentindo bem, e a coquetelaria apotecária vai nesse sentido. Além disso, me interessa o resgate do passado e de receitas que ficaram esquecidas, como nossas garrafadas e poções. Era natural seguir nesse caminho.
A Bela Vista é um dos bairros mais tradicionais da cidade, reduto histórico de imigrantes e da vanguarda cultural. Quando vocês idealizaram o Espaço Zebra, esta localização já parecia ideal? Gostaríamos que você comentasse a relação da casa com o bairro, já que ela está aberta, de uma forma ou de outra, dia e noite, para diferentes públicos.
NP: O Espaço Zebra surgiu da vontade do Renato de mostrar o trabalho artístico dele em um espaço mais informal e autoral do que o das galerias tradicionais. Sabíamos que iríamos receber pessoas, e queríamos um lugar que não fosse tão afastado. Mas não tínhamos grana, e tudo, já em 2012, parecia muito caro. Procuramos um galpão por cerca de 8 meses até encontrar esse espaço, que foi completamente modificado por nós mesmos. Foi o Bixiga, portanto, que nos escolheu. E hoje adoramos estar aqui, porque é uma comunidade no meio do centro da cidade. As crianças brincam na rua, conhecemos os nossos vizinhos e a história e tradição do bairro nos inspira muito. A feira do Bixiga, os personagens. E sim, os públicos são distintos, e isso torna o espaço ainda mais interessante. É uma portinha que é um portal e entra quem tem interesse em atravessar para descobrir o que tem atrás da porta de ferro.
Quantos coquetéis compõem hoje a carta do Apotecário? Você poderia relembrar alguns detalhes que influenciaram na concepção dela e como foi a participação do Márcio Silva?
NP: A carta muda quase semanalmente. Temos uma média de sete ou oito coquetéis autorais, além dos clássicos e versões. A concepção começa a partir dos ingredientes. Eu acho alguma coisa nova e testo, usando meu conhecimento dos cursos de vinho e harmonização, que ajudam muito.
Isso pode acontecer com uma bebida nova, com uma fruta, uma erva, uma raiz. Atualmente troco muita informação com o Washington Campestre, que é bartender do Zebra e que sempre me ajuda nas criações de alguma forma.
O Márcio Silva foi muito importante para dar o pontapé inicial, quando decidi investir na coquetelaria autoral e apotecária. Eu não queria apenas chamar um bartender aqui para fazer os drinks. Eu queria prepará-los e com o conceito que já havia definido – meio vitoriano, com a coquetelaria apotecária.
Aí pesquisei alguns nomes e achei que o Márcio era o que melhor se encaixava para uma consultoria naquele momento: além de um mega bartender, ele era engenheiro químico e poderia me ensinar os processos. E foi o que ele fez: me ensinou um pouco da história, muito sobre hospitalidade e o beabá de infusões, macerações, xaropes, bitters. Depois da consultoria, segui com os aprendizados dele para ir adiante.
A produção artesanal é um carro-chefe da casa, certo? Como vocês gerenciam a produção de insumos, infusões, bitters, xaropes, etc? Ainda há tempo para pesquisar por novos sabores?
NP: Quase tudo é feito aqui, com algumas exceções. Ainda não consigo produzir nossa própria tônica, por exemplo. Mas estamos testando um vermute e todas as infusões e xaropes, além de muitos dos bitters serem feitos aqui. Isso é parte do processo – eu mesma vou à feira, garimpo ingredientes tanto quanto taças novas e os testes acontecem organicamente. Não é nada muito organizado, ou tabelado, mas bastante orgânico. E a pesquisa é constante. Eu diria quase que diária. Agora que estou preparando o livro – “Das Garrafadas aos Coquetéis Apotecários”, que sai no fim do ano – essa pesquisa é ainda mais intensa, e passa principalmente pelas nossas raízes brasileiras.
Fica claro que a experiência do Apotecário envolve também outros elementos importantes. A música, a decoração e o resgate do tratamento personalizado dispensado ao cliente, entre outros. Qual a importância deles para o sucesso do projeto?
NP: O projeto do Espaço Zebra já nasceu híbrido. A vinda aqui é, por si só, uma experiência, e a coquetelaria é um dos elementos dela. O norte é sempre o trabalho artístico do Renato e a nossa vontade de que o galpão seja todo um grande gabinete de curiosidades. Quando criamos a Noite do Apotecário, que foi nossa primeira experiência envolvendo a coquetelaria, isso se transformou ainda mais. Daqui pra frente, esses elementos – música, arte e audiovisual – estarão ainda mais ligados à coquetelaria e à gastronomia nas nossas performances, que começarão em agosto.
Mesmo com inúmeras críticas positivas e tamanho reconhecimento, ainda é possível manter uma certa aura de speakeasy?
NP: Nós fechamos a porta conforme lotação e fazemos questão de não divulgar tanto o espaço, para que a principal porta de chegada aqui seja o boca a boca. O Zebra atende 50 pessoas por noite, e é isso. Se você chegar aqui, é porque quer essa experiência completa – da galeria de arte ao ateliê e o bar. Estamos no underground, literalmente. Nosso DNA é esse. O Zebra nasceu em 2012, quando o termo ainda não era nem tão comentado no Brasil.
ASIAN MARTINI
INGREDIENTES
50 ml shoshu infusionado com melão
25 ml de Absolut Elyx Vodka
7 ou 8 folhas de coentro
15 ml limão siciliano
MODO DE PREPARO
Coloque todos os ingredientes em uma coqueteleira com gelo, agite e faça um double straining para uma taça tipo cocktail. Guarneça com uma folha de coentro e sirva.
Separamos esse trecho de uma entrevista sua ao jornal Valor Econômico, sobre a criação do projeto, em 2015: “Queria fazer alguma coisa para as pessoas se sentirem bem, outra relação com o tempo, um diálogo”. Passados dois anos, você se considera realizada neste sentido?
NP: Sim, as pessoas se sentem em casa. Elas necessariamente desaceleram, porque atravessam a galeria, descem as escadas para, enfim, descobrir os cantos do Espaço. Há gavetas a serem abertas, livros a serem lidos, histórias a serem contadas de cada um dos elementos que estão em nosso bar– da concepção dos drinks até a escolha dos copos. O diálogo com a nossa história e com nosso jeito de fazer cria uma relação muito próxima. Alguns dos nossos bons amigos em São Paulo fizemos aqui mesmo, no balcão do Zebra.
Para finalizar: pelas circunstâncias em que vivemos atualmente, espaços deste tipo têm se tornado ainda mais essenciais, como contraponto à caótica rotina diária?
NP: Não somente à rotina atribulada de todo mundo, mas necessários por causa da mudança de mentalidade, de mindset. Não queremos criar mais um lugar decorado por um decorador, finalizado por um investidor e que se parece com outros tantos. As pessoas estão cheias da mesmice. Elas querem saber de quem estão comprando, querem a verdade, uma personalidade, uma identidade, inclusive como consumidores. Isso vem acontecendo em muitas esferas – da compra de orgânicos dos produtores locais até a moda. As pessoas querem uma outra relação com o consumo, e levam essa mentalidade também aos espaços de lazer.