⍟ A mágica dos ingredientes artesanais tem transformado a árdua tarefa de introduzir a alta coquetelaria no interior do estado do Paraná em uma jornada recompensadora
Publicado em 31 de outubro de 2018, às 15 horas.
Contam as histórias mais antigas que as bruxas eram mulheres corajosas, com amplo conhecimento sobre o uso de ervas e especiarias e que, através de bebidas artesanais, ajudavam a curar as mais variadas doenças. Por contrariarem as crenças religiosas da época, suas habilidades foram marginalizadas, criando a figura caricata que hoje conhecemos, voando em vassouras e usando seus chapéus pontudos. Apesar do folclore, as verdadeiras bruxas – em seu sentido original – continuam entre nós, e uma delas é Roselayne Uai.
Dois anos depois de sua primeira entrevista para o Clube do Barman, procuramos novamente Roselayne para saber sobre suas novas poções levadas a efeito atrás dos balcões e em suas andanças como consultora de bares. Bartender há oito anos, é em uma propriedade rural próxima à fronteira com o Paraguai, na cidade de Goioerê (PR) que a magia da coquetelaria toma forma. Apaixonada pelo contato com a natureza e pela produção artesanal de seus próprios insumos, ela cultiva alguns ingredientes que não podem faltar em suas misturas e garrafadas. É entre as árvores, onde o sinal de telefone teima em falhar, que busca inspiração. “Não tem jeito, sou uma pessoa da roça!”, brinca.
O gosto pelas misturas nasceu ainda na infância, quando, aos nove anos, já cozinhava para alimentar a numerosa família. De olho nas receitas da avó cigana, Roselayne cresceu e optou pela faculdade de gastronomia. Saiu da cidade em que morava para se formar, mas logo voltou, em 2006, para montar o Balaco’s Bar, primeiro balcão a servir seus cocktails saborosos e coloridos.
No entanto, é nos centros urbanos do Paraná que está sua maior contribuição para a coquetelaria. Foi graças ao trabalho desenvolvido por ela que hoje a palavra mixologia já é conhecida entre os moradores de cidades como Cascavel, Maringá e Londrina.
Iniciativas como o Circuito Charmoso da Cachaça, consultorias de bares, palestras, vídeos e treinamentos contribuíram para que, pouco a pouco, não só os barmen se especializassem, mas também os frequentadores das casas se familiarizassem com as bebidas “melhor do que muitos consumidores de cidades grandes”, relembra.
Isso se deve, em grande parte, à receptividade do público. “Cascavel é uma cidade pequena, com apenas 350 mil habitantes, mas com um público bastante aberto a novidades na coquetelaria”, explica. “Fazer alguém experimentar uma bebida nova é muito mais fácil do que uma comida nova”.
PESQUISA E SOLIDIFICAÇÃO
Suas primeiras cartas criadas em consultorias de bar se popularizam de tal forma que ampliaram seus negócios e solidificaram o nome de Roselayne nos bares e restaurantes da cidade. Um dos primeiros menus autorais foi para o misto de bistrô oriental e casa noturna, Banggai. A casa, segundo ela, foi promissora ao abrir espaço para drinks autênticos, com ingredientes orientais que harmonizassem com os pratos da casa e ainda pudessem ser levados para a ‘balada’.
“Até então, nós não tínhamos alta coquetelaria por aqui. Estamos quase na fronteira do país, as cidades são pequenas”, justifica. Muitos dos cocktails criados para o bistrô acabaram se tornando carros-chefe do bar e continuam no cardápio até hoje.
A recepção do público foi tão positiva aos drinks criativos, coloridos e com guarnições elegantes que seu nome chegou a novas casas e até eventos, cada um com novas possibilidades de criação.
Confira a receita do drink Brida, um dos mais vendidos no balcão do Banggai:
Brida
INGREDIENTES
50 ml de Vodka Absolut Elyx
20 ml de licor de flor de sabugueiro artesanal
15 ml de xarope artesanal de sichuan (pimenta chinesa)
10 ml de suco de limão siciliano
100 g de purê de amoras frescas
Amoras frescas in natura
MODO DE PREPARO
Junte todos os ingredientes em uma coqueteleira e bata bem. Sirva em um copo baixo com gelo e guarneça com amoras frescas.
Depois do Banggai, Roselayne foi convidada a criar um menu inspirado na coquetelaria tradicional das décadas de 20 e 30. O cliente era um restaurante tradicional italiano. Com a ideia de fugir do clichê e buscar referências em personalidades ítalo americanas da época, a mixologista mergulhou de cabeça nas histórias obscuras dos atores de Hollywood, com suas festas e preferências etílicas.
“Fiz uma pesquisa pesada sobre os filmes da época, conversei com cineastas brasileiros e fui fazendo descobertas incríveis, como quem era o principal fornecedor de bebidas em Las Vegas, quais atrizes de Hollywood mais bebiam e como eram as festas naquele tempo”, explica.
O resultado foi uma carta extensa, em que os drinks foram batizados com os nomes das grandes estrelas da época e tinham base nos licores e amaros italianos que, a costume da época, eram misturados com outros spirits. Apesar de um pouco pesada para o paladar regional, Roselayne afirma que ficou surpresa com o sucesso.
“Eu dou muito valor ao trabalho de pesquisa sério na coquetelaria”, diz. “As pessoas gostam de ouvir essas histórias e ficam fascinadas”.
QUEBRA DE PARADIGMAS
O público da bartender busca cada vez mais trazê-la para eventos, mas não costuma pedir no cardápio nada que se encontre comumente em aniversários, casamentos e outras confraternizações. “Ano passado eu fiz um aniversário de 23 anos com um menu só de coquetelaria clássica”, diz.
Essa tendência de trazer o requinte do bar para dentro dos eventos tem mudado a forma com que Roselayne encara a rotina dos eventos. “É como se você pudesse brincar com a sua credibilidade. Pois você tem que trazer toda a coquetelaria extremamente fina de um bar e montá-la em poucas horas”, conta.
“Caipiroska está virando coisa do passado e agora temos que trabalhar Negronis”, o que, segundo ela é positivo, pois os clássicos são simples e imbatíveis, além de dispensarem grandes quantidades de insumos. Cada evento, para ela, é como um cartão de visita: todos passam a te conhecer e apreciar o seu trabalho, o que abre novas portas.
“Aqui, as pessoas valorizam muito nossa cultura de bar”.
SIMPLICIDADE
Se tem um aspecto da coquetelaria que Roselayne não abre mão é a simplicidade. No lugar de escolher ingredientes caros, de difícil acesso, receitas demoradas e spirits importados, sua experiência ensinou a optar pelo mais fácil, sem deixar de lado o requinte de sabor e preparo.
Para ela, não adianta trazer conceitos e sabores complicados para o público. “Só trabalho com coisas a que as pessoas têm acesso. Se eu quero levar minha arte até as pessoas e fazer com que elas entendam, tem que ser dentro do mundo que elas conhecem”.
REGIONALIZAÇÃO
Suas receitas trazem para dentro do copo muito das tradições gastronômicas do povo paranaense. No interior, principalmente, há muitas famílias descendentes de imigrantes italianos, alemães, portugueses que cresceram com a comida caseira, artesanal. “Para tirá-los de casa e convencê-los a experimentar algo novo, a bebida deve falar a língua deles”.
Inspirada em um sabor da infância, Roselayne criou o cocktail Amor Uai, que é uma mistura de whisky ou rum envelhecido e doce de abóbora. Quase uma confort food. Ela sugere que seja feita uma calda com quatro unidades de doce de abóbora para cada 200 ml de água. “O ideal é que a calda fique bem forte, quase no ponto de uma geleia”.
Amor Uai
INGREDIENTES
65 ml de Whisky Ballantine’s Finest
30 ml de calda de doce de abóbora com canela artesanal (ou metade de um doce de abóbora tradicional)
Suco de meio limão tahiti pequeno
Canela em rama
MODO DE PREPARO
Adicione todos os ingredientes em uma coqueteleira com gelo e agite. Faça uma dupla coagem para um copo baixo com gelo em cubos e guarneça com a canela em rama.
Roselayne acredita na importância da coquetelaria para toda a cultura de um povo. Para ela, é como a cultura das garrafadas, das bebidas indígenas, da própria consertada, bebida consumida em Santa Catarina. “Dependendo de onde você está no Brasil a coquetelaria é isto. É mais fácil fazer sucesso nas capitais porque os clientes já estão catequizados. Mas, e o meu povo?”, indaga.
“Aqui onde vivo, para onde quer que eu olhe há um mar de plantações. Nós vivemos cada uma das estações do ano, cada uma delas com uma colheira e nossa paisagem está sempre mudando”, reforça.
REVERÊNCIA À CACHAÇA
Nos últimos anos, o trabalho de Roselayne tem fincado raiz cada vez mais perto da indústria e de drinks feitos à base da aguardente brasileira. Sua produção de conteúdo e treinamentos sobre o destilado começaram há poucos anos, com o Circuito Charmoso da Cachaça.
Ele funcionava como uma grande capacitação de bartenders, para que conhecessem mais sobre a bebida, sua importância nacional e como valorizá-la nos cocktails. Os bares participantes ganhavam treinamento e uma carta exclusiva de drinks. Mas, desde 2016, este modelo deixou o estado para ganhar o país através de uma parceria com a Cachaçaria Nacional.
Nascia, assim, o Clube CN, que valoriza os produtores nacionais do destilado com o envio de cachaças artesanais e conteúdos educativos sobre a bebida. Roselayne é a mixologista encarregada de criar receitas à base do spirit para que todos possam reproduzir em casa, ao lado da família e amigos. Os vídeos, que também trazem um olhar gastronômico sobre o uso da bebida, são gravados dentro de sua casa.
“Isso deu um up no mundo das cachaças artesanais, porque agora o consumidor, o apaixonado pela bebida, aprende mais sobre a mixologia brasileira, além de experimentar novos sabores”, diz. Ao mesmo tempo, o Circuito Charmoso não deixou de rodar os bares paranaenses.
Atrás da Moita
INGREDIENTES
70 ml de cachaça
30 ml de xarope artesanal mix de ervas frescas
15 ml de sumo de limão tahiti
MODO DE PREPARO
Para o xarope de ervas, coloque 500 ml de água e de açúcar refinado em uma panela e leve ao fogo até atingir o ponto de fervura. Em seguida, desligue o fogo e adicione punhados generosos de erva doce, capim santo, hamamélis e guaco. Tampe, deixe esfriar, e depois coe para um recipiente esterilizado.
Adicione a cachaça, xarope e suco de limão em uma coqueteleira com gelo. Agite bem e depois sirva em uma caneca de metal com cubos de gelo. Por fim, guarneça com um ramo de erva doce ou capim limão.