⍟ Na parte 1, a origem. Na parte 2, as revoltas. Na parte 3, o orgulho. Se fôssemos vocês, gritaríamos com toda força: “Eu nasci no país que deu ao mundo a cachaça!”
Na segunda parte da nossa série sobre a cachaça, focamos mais nos séculos XVI e XVII – época em que o açúcar ainda era o grande produto da economia brasileira. Trouxemos todos os empecilhos causados pela própria Coroa para a disseminação e popularização da bebida; a revolta da população sobre uma proibição imoral e suas consequências para o ciclo do açúcar.
Os anos de glória da cana-de-açúcar estavam acabando. As bandeiras adentravam cada vez mais no interior do país e um novo negócio estava surgindo: o ouro e a mineração. Ao longo do século XVII, aumentou exponencialmente a vinda de escravizados da África e a estrutura urbana no Brasil. O litoral sudeste era quem liderava a economia. Os portos do Rio de Janeiro e de Santos se tornaram verdadeiros centros econômicos e culturais, além de serem a porta de entrada para o resto do país.
A economia mineradora se provou mais rentável. O ouro e pedras preciosas daqui retirados eram vendidos a preços exorbitantes na Europa. Portugal se construiu com o dinheiro da extração mineral de nossos solos brasileiros. Havia, claro, outras formas de renda. O açúcar mesmo nunca parou de ser produzido, por exemplo. O comércio de algodão também era relativamente alto. Mas nada conseguia bater de frente com o ciclo minerador. É nesse momento em que o Pacto Colonial definitivamente se firma e todas as características estudadas lá nas aulas de História do “Brasil Colonial” se provam verdadeiras.
Mas é aqui que fica a provocação da nossa série. O açúcar aqui produzido, aqui não era consumido. O algodão aqui cultivado, aqui não era usado. O ouro daqui extraído, aqui não virava riqueza. Mas a cachaça aqui fabricada, aqui era bebida. Onde foram parar os consumidores? Para onde foram os alambiques?
DOIS SÉCULOS NO ESQUECIMENTO
O que aconteceu com a cachaça foi, na realidade, pensado. Como nós citamos algumas vezes nas matérias anteriores da série “Raízes da Cachaça”, a bebida nunca foi bem vista – seja pela Coroa portuguesa, seja pelos próprios habitantes do país. Por ter uma origem misteriosa, mas certamente popular, sempre foi vista como uma bebida “menor” ou “inferior”. A grande bebida portuguesa era o Vinho, a Bagaceira, o Vinho do Porto. Bebidas de marinheiros, navegadores, poetas, reis. Bebidas da nobreza. A cachaça era bebida do povo, bebida dos escravizados. Não é uma surpresa que ela tenha passado por um processo de esquecimento, portanto.
E, como dito nos parágrafos anteriores, o Brasil estava, enfim, se estruturando. O ciclo minerador necessitava de ainda mais infraestrutura do que a plantação e comércio da cana. Os portos litorâneos precisaram ser modernizados, as cidades se tornaram centros culturais de muita troca; estradas e rotas de extravio precisaram ser criadas para a saída desse ouro do país – já que a mineração era praticada, basicamente, no estado de Minas Gerais, que não possui fronteira com o mar. Assim, foram necessários grandes incentivos para que o país crescesse – no campo econômico, populacional e social.
Para Portugal era uma escolha óbvia. Gastava-se mais com a mineração? Evidente. Mas o ganho era muito maior. A Coroa mantém-se por anos a fio apenas com o dinheiro da venda desse ouro extraído do Brasil. Financia buscas por novas colônias, potencializa o tráfico escravagista e se solidifica como uma grande potência global. Não havia mais tempo e muito menos motivos para se pensar em cachaça. Todas as atenções estavam voltadas para a mineração.
PARA TUDO SE TEM UM FIM
Até para as grandes civilizações e grandes impérios. Portugal não mais conseguia se sustentar. Os gastos eram tão exorbitantes que nem o ouro brasileiro dava conta. Outros países precisaram entrar na jogada para que a conta fechasse – mas a dívida ia aumentando. Em certo momento, tornou-se insustentável. O tráfico negreiro fora abolido – com grande atraso; o ouro já não era o produto comercial de outrora; o café se tornava a grande moeda comercial do país… e Portugal? Foi para o brejo. Brasil torna-se independente da Coroa em 1822, se consolida como um Império até meados do século XIX e vira, enfim, uma República Federativa em 1889. Os nossos valores? Ordem e Progresso. Nossos orgulhos? O café, o povo miscigenado e nossas belezas naturais.
Será? A História do Brasil é, na realidade, muito menos agradável do que esse mesmo texto sugere. Nosso passado nos mostra que somos um povo que prefere deixar o tempo resolver nossas pendências. Não somos muito fãs de enfrentar de peito aberto o que nos aflige – preferimos jogar tudo para debaixo do tapete. Oras, situações como as citadas no parágrafo acima deixam marcas. De Colônia para Império e de Império para República em um espaço de 70 anos. Como fica a população nessa história? Majoritariamente analfabeta, rural e sem preparo para, ao menos, entender o que se passava em sua pátria. A verdade é que nunca se fez questão de que essa população fosse agente da história do país. Foram eles quem o construíram com as próprias mãos; em contrapartida, essas mãos sempre permaneceram vazias.
Nem uma garrafa de cachaça, no fim do dia, podiam segurar.
O RESSURGIMENTO DA CACHAÇA COMO ORGULHO NACIONAL
Diante todas essas mudanças radicais na estrutura do país, a arte se via como um sopro de sobriedade. José de Alencar e sua Iracema; Pedro Américo e sua independência; Machado de Assis e suas memórias póstumas, Lima Barreto e o nosso triste fim. Se a Insurreição Baiana tentava por um fim a anos e anos de injustiças, nossos artistas também o faziam. Perdoem-nos os livros de história, mas queremos acreditar que Aleijadinho, ao esculpir suas obras, entre uma pausa e outra, tomava um gole de cachaça. Em um mundo em que Machado decidiu se Capitu traiu Bentinho entre um gole e outro da nossa “branquinha”. É esse o Brasil que acreditamos.
E foi esse o Brasil em que os modernistas acreditaram. Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Anita Malfatti, Oswald de Andrade… e toda a classe da Semana de Arte Moderna de 1922. Dentre todas as obras da mostra, a cachaça foi escolhida como a bebida oficial da Semana. Servida todos os dias no Teatro Municipal de São Paulo, os modernistas escolheram a nossa aguardente por um motivo único especial: era a bebida que emanava em sua história e sabor os verdadeiros ideais de brasilidade.
Mais tarde, Mário de Andrade apresentaria a obra “Eufemismos da Cachaça”, uma ode à bebida brasileira. Tarsila do Amaral e seu marido Oswald de Andrade não cansaram de promover a “mardita” em encontros, reuniões e saraus na Europa. Se os modernistas tinham como objetivo a emancipação do povo e do orgulho brasileiro, isso só seria possível com a volta do consumo e, principalmente, do conhecimento sobre a cachaça.
A CACHAÇA GANHA O MUNDO
A Semana de Arte Moderna revolucionou muita coisa no país. Há quem diga que não foi tão relevante assim, é verdade. Há quem diga que era tudo mais do mesmo. Opiniões sempre são bem-vindas. Ficamos com a narrativa do ressurgimento da cachaça como um orgulho nacional. Se nas artes plásticas o teto é mais relativo, para a bebida é diferente. Introduzida na Europa com um quê exótico, logo se popularizou. Tomou conta das festas, dos bares e, consequentemente, do mundo da coquetelaria. Antes vista como uma bebida inferior, hoje é degustada, procurada e, orgulhosamente, respeitada.
Tirar a pecha da cachaça como bebida qualquer aqui no Brasil e fazer com que seja conhecida como os outros destilados, como de fato é, ainda é algo importante a ser conquistado de forma plena. É certo que ainda há um grande trabalho a ser feito para que atinjamos o seu devido reconhecimento no mundo inteiro, mas a mudança de mentalidade de consumo deve começar dentro do país que a criou.
Mas, se o mundo das bebidas é um círculo, o Norte pode ser aqui. Nesse planeta, quem comanda é o Brasil. E aqui tudo acaba em cachaça.
Leia a primeira e a segunda parte desta série de matérias:
Raízes da Cachaça – Parte 1 – paralelos entre a história do Brasil e da bebida