Representação de um mercenário sírio bebendo cerveja. Do período do reinado de Akhenaton (1352 a 1336 a.C). Exposição no Museu Neues, em Berlim.
⍟ Como a bebida alcoólica surgiu na história? Foi por acaso ou sua invenção foi proposital? Tinha fins recreativos ou foi criada para outras finalidades? Entenda estas e outras curiosidades
O álcool não é nenhuma novidade. É mais antigo que a história e, para muitos historiadores, a história da humanidade começou quando ele foi fabricado pela primeira vez no Crescente Fértil do oeste da Ásia, hoje conhecido como Oriente Médio. Essa região era muito fértil para o cultivo de grãos há cerca de sete mil anos e ali foram formados os alicerces da agricultura e, por extensão, da civilização.
Alguns desses grãos foram moídos e assados, dando origem ao pão. Mas como o pão acaba mofando – mesmo que não esteja armazenado em um saco plástico em cima da geladeira – os agricultores passaram a transformar os grãos em cerveja e, com a ajuda do álcool, seus valores calóricos e nutricionais duravam por mais tempo do que no pão.
Não há registros que nos digam exatamente quando isso aconteceu, mas por volta de 4000 a.C. havia muita cerveja sendo consumida em todo o Crescente. Milhares de quilômetros ao leste, produtores de arroz na China e no sudeste da Ásia também já estavam produzindo cerveja. Dizem por aí que o arroz faz uma cerveja muito boa.
INCIDENTAL? ÁLCOOL É CONSERVANTE
A maior parte disso ocorreu muito antes que os registros históricos sobre os spirits começassem a existir. Muitos livros sobre formas antigas de álcool insistem em afirmar que a fabricação de cerveja foi um acidente. Autores mal informados escrevem que os grãos eram armazenados em ânforas de argila secas, onde a umidade fazia com que os grãos brotassem e mais água penetrasse e, como que por mágica, dali era criado o álcool. Essas histórias causam uma grande injustiça aos nossos antepassados, pelos quais a absoluta necessidade garantiu que fossem de fato mais inteligentes do que a maioria de nós hoje, quando se trata de criar coisas bebíveis e comestíveis a partir daquilo que o mundo ao redor oferece.
Para criar cerveja a partir de grãos e água, um fabricante de cerveja, há seis mil anos, precisou ter cuidados de higiene, ferver os grãos e talvez até adicionar algumas flores (a maioria dos fabricantes de cerveja usa flores de lúpulo atualmente) ou até mesmo algumas cascas de árvores na mistura para evitar que ela estragasse.
E, não nos esqueçamos, fabricar álcool significa proteger o sustento da deterioração. O álcool é um conservante. Inibe o oxigênio de destruir lentamente muitos aromas, sabores, nutrientes e vitaminas em alimentos e medicamentos. As pessoas usam álcool na pele porque mata patógenos e bactérias. Além disso, ele pode fazer o mesmo internamente. Comida estragada pode matar; mas uma dose de álcool pode matar os germes em alimentos estragados antes de matar aquele que os ingere.
INGREDIENTE MILAGROSO?
Reveja alguns relatos dos tempos bíblicos e talvez você se depare com o hábito de misturar água no vinho. É verdade. As pessoas costumavam consumir vinho misturado com água. A posição central do vinho nas tradições judaicas e cristãs é inquestionável. No entanto, adicionar água ao vinho não era uma tática destinada a diluir a potência do vinho, embora isso realmente acontecesse. Pelo contrário. A água era perigosa, cheia de bactérias e patógenos e com mais probabilidade de prejudicar do que fazer bem. Os humanos sempre precisaram de água para viver e, até cerca de dois séculos atrás, ninguém sabia por que algumas águas deixavam as pessoas doentes e outras não.
Há cinco mil anos, nossos ancestrais sabiam que se você adicionasse vinho à água mais suspeita, essa água não deixaria as pessoas doentes. Tente algum dia. Digamos que você esteja na natureza e haja apenas água salobra disponível. Misture partes iguais de água e vinho (com pelo menos 12% de álcool), aguarde cerca de meia hora e a água se tornará segura para beber. Os seres humanos que viviam nos aprisionantes e apertados confins de cidades recém-criadas há milhares de anos não tinham muita água fresca e limpa disponível. Agora você sabe por que as pessoas misturavam vinho com água.
VINHO E CERVEJA, PAIS DOS SPIRITS
Vinho e cerveja eram indispensáveis à vida humana, especialmente quando os humanos residiam em novas cidades e vilas que mais tarde se tornariam locais de leis, regras, governantes, escritores, músicos, artistas, líderes religiosos e, eventualmente, historiadores. Esses primeiros historiadores escreveram sobre bebidas alcoólicas e hoje podemos ler sobre cervejas e vinhos cultivados não apenas no Oriente Médio e na China, mas no norte da África (onde os egípcios inventaram canudos para ajudá-los a beber suas cervejas turvas e viscosas), no México e na América Latina (lar do pulque, sobre o qual falaremos em outra ocasião), na Turquia, na África ocidental, na Itália, na Grécia, no Japão, na Índia e, claro, nas Ilhas Britânicas.
Cerca de cinco mil anos atrás, as Ilhas Órcades, no norte da Escócia, cervejas eram produzidas para fins religiosos. As bebidas usadas nos rituais daqueles povos antigos continham plantas e cogumelos venenosos, entre outros ingredientes. As visões eram garantidas, ainda que seus clérigos não voltassem do porre depois de bebê-las.
Os produtores de cerveja e vinho aprenderam que muitas plantas, sementes, flores, árvores e até minerais podem aumentar a estabilidade e a longevidade de suas bebidas. Alguns desses aditivos foram usados em experiências religiosas, místicas e até mágicas. Eventualmente, todas aquelas cervejas e vinhos acabariam estragando algum dia. Ainda hoje, falamos em boca miúda sobre certas garrafas de vinho que duram vinte, trinta, até cem anos. Mas esse tipo de longevidade requer uma adega perfeita, recheada de garrafas de vidro fechadas com rolhas de cortiça apertadas. E essas são invenções recentes.
SPIRITS: LONGEVIDADE E PUREZA
No entanto, à medida que o nível de álcool aumenta, a longevidade e a pureza também aumentam. Em algum momento, as civilizações antigas descobriram como criar um spirit destilado de alto teor alcoólico (high-proof). Um destilado é muito mais robusto em teor alcoólico e mais puro do que qualquer vinho ou cerveja e, mais importante, esse álcool concentrado é impenetrável à maioria das intempéries, sejam estas bactérias, patógenos, mudanças climáticas sazonais ou até mesmo a ação do tempo.
Porém, como a descoberta de cerveja ou vinho, não há como ter certeza de quando e onde a primeira destilação aconteceu. Como gosta de observar o historiador da coquetelaria David Wondrich, nosso “Oráculo da História do Bar”, “esclarecer a história do álcool é bastante difícil, pois consiste em coletar fatos narrados por pessoas um pouco bêbadas”. Pode ter acontecido em qualquer lugar. Contudo, há algumas pistas promissoras sobre as origens da destilação.
Saiba como é feita a destilação de bebidas alcoólicas lendo a seguinte matéria:
Saiba como é feita a destilação – Parte 1 – Introdução e fermentação