⍟ Considerada o “ouro” da região paranaense, erva-mate se alia a outros elementos típicos em projeto do barman Rogério Rabbit
Desde o período pré-colombiano, antes da chegada dos colonizadores ao Brasil, tribos como os Kaigangue, Tupi e Guarani já consumiam, exclusivamente durante os rituais religiosos nas tribos, bebidas feitas a partir de batata, milho e mandioca, que passavam por um processo de fermentação natural. Os indígenas desconheciam as propriedades da fermentação dos alimentos, e só saberiam que o produto se tratava de álcool após a vinda destes colonizadores, que já tinham técnicas mais avançadas para o preparo de bebidas e as consumiam com outras finalidades, além da religiosa.
Também a erva-mate se destacava entre as matérias-primas conhecidas e consumidas pelos índios. A planta, tipicamente brasileira, já era usada antes mesmo da chegada das naus de além-mar.
Esse rico elemento da cultura indígena, cuja brasilidade ainda é pouco reconhecida, inspirou o barman Rogério Coelho, o Rabbit. Ele criou uma carta de 15 drinks, com base na erva-mate, chamada Tapii’tea. O nome mistura uma espécie de coelho brasileiro em extinção, de pelagem vermelha e origem indígena (tapiti) e a palavra “tea”, em inglês.
O objetivo é mostrar a erva-mate como uma experiência sensorial ousada. E que, por meio dos drinks, seja resgatada a raiz da ligação indígena com a cultura do mate, além da riqueza do Paraná. Por isso, há mais de um ano Rabbit está instalado em Curitiba para dedicar-se à pesquisa das raízes do mate na cultura de seus antepassados, traço bastante característico da região.
Para o barman, o mate representa parte importante da cultura indígena e reflete a história do povo brasileiro e seus costumes, embora muitas vezes seja deixado de lado no ambiente do bar.
UMA RELAÇÃO ESPECIAL
“O índio tem uma relação ritualística muito especial com a erva-mate. Para ele, a erva é sagrada, é um presente que ele oferece às visitas. Já os clientes, por outro lado, não costumam valorizá-lo. Para eles é um ingrediente muito comum, embora não seja usado com frequência em drinks”, contrapõe. Ele também afirma que o mate é tratado com muita indiferença pela indústria. Atualmente, são produzidos apenas chás e ervas para a preparação de chimarrão (bebida quente consumida no sul do país) e o tererê (popular nos estados do Paraná e Mato Grosso do Sul).
Segundo pesquisadores, a erva-mate foi identificada por portugueses e espanhóis em países latino americanos como o Peru, Chile e Colômbia, mas principalmente no Brasil. O nome veio da cumbuca utilizada para ingerir a erva, conforme o dialeto quechua peruano. De início, o hábito dos indígenas era mascar as folhas do mate (ou Kaá, como é conhecido pelos guaranis) e não consumi-lo de outras maneiras.
Com a chegada dos colonizadores, foi descoberta a propriedade fitoterápica da bebida. Aqui os portugueses se depararam com grandes quantidades da erva. E se de início ela era considerada “alucinógena”, coube aos padres jesuítas a missão de quebrar esse estigma. Eles descobriram que o chá da erva-mate era, na verdade, revigorante.
Como muitas riquezas indígenas, o gosto pelo mate caiu na graça dos colonizadores. Eles difundiram seu consumo pela infusão – o que hoje é conhecido como chimarrão ou tererê, na região sul. Algumas aldeias guarani e kaigangue também preparavam bebidas similares ao chimarrão. Os padres missionários ainda ensinaram os índios brasileiros a cultivarem e colherem a erva, que começou a ser exportada.
RESGATE DAS RAÍZES
Rabbit, que é neto de indígenas, acredita que a principal causa da rejeição à bebida é o seu próprio sabor. Por isso, fez diversos testes para entender suas nuances e oferecer os drinks de forma que ficassem mais agradáveis ao paladar. “Ofereço o mate na taça de vinho. Ele é extremamente doce, um produto que a indústria comum não oferece”, explica.
Com o intuito de resgatar as raízes culturais do mate, os drinks do Tapii’tea foram concebidos originalmente sem álcool. Todos usam o chá da erva como base acompanhados por frutas ou outros ingredientes. No entanto, a vodka pode ser adicionada conforme a vontade do cliente.
Segundo Rabbit, simplificar os drinks e desconstruir o costume de criar coquetéis com muitos elementos foi um desafio que impôs a si próprio e teve resultados surpreendentes. “A simplicidade é o que se transforma os drinks em bebidas incríveis. Quando você vai pelo caminho simples, tem resultados surpreendentes”, diz.
MUITO ALÉM DO MATE
Para fugir do clássico e conferir um toque de ousadia – marca registrada de seu trabalho -, Rabbit decidiu trazer também para os drinks o sabor de elementos locais, entre eles o pinhão.
Foi assim que surgiu o KUR’ YT’ YBA, um Vermu-tea (vermute e erva-mate) maturado em barril de madeiras encontradas no Brasil e levemente adoçado com licor de pinhão paranaense. “O pinhão tem um gosto totalmente diferente do que estamos acostumados a experimentar em um drink. Qual gosto uma bebida com pinhão devia ter? Essa foi a receita que mais me deu trabalho, mas também é uma das mais legais que já fiz”, reflete.
KUR’YT’YBA
INGREDIENTES
70 ml TAPII’ TEA – infusão de mate tostado maturado em barril de madeiras encontradas no Brasil
30 ml Chivas Regal 18 anos
MODO DE PREPARO
Infusione 10 g de mate tostado em 100 ml de água quente entre 70ºC e 90ºC por 10 minutos e depois coe.
Em um pote de vidro com as sementes do pinhão sapecada na grimpa, deixe infusionar no TAPII’ TEA por uma semana no mínimo.
Bata tudo fortemente com gelo em cubos em uma coqueteleira e coe para uma taça coupe vintage defumada com as sementes de pinhão.
Sobre uma base de Araucária, madeira certificada, queime a grimpa (folhas secas da Araucária), cubra com uma redoma de vidro e sirva.
BATISMO NAS ÁGUAS INDÍGENAS
Todos os coquetéis do Tapii’tea foram batizados com nomes em tupi, guarani e kaigangue, além de combinarem a grafia da leitura nas línguas indígenas.
Segundo o barman, o mate também pode ser usado em drinks tradicionais, como a caipirinha e a margarita, por exemplo. Mas, para ele, interessante mesmo é adicionar a erva em bebidas diferentes, além de usar ingredientes locais.
“Nos drinks do Tapii’tea eu posso adicionar além do mate, o pinhão, a mimosa (tipo de tangerina), além de adoçar as bebidas com mel de abelhas nativas. Dou ênfase ao mel justamente por ser algo exótico e pela questão dos ingredientes locais serem valorizados”, explica.
A carta do Tapii’tea, instalado em uma sala de um restaurante em Curitiba, deve ser ampliada em breve. Está a caminho mais uma criação: o Kaá-fe, blending de mate com café.
One commentOn Da aldeia para o bar: erva-mate dá sabor autêntico a criações pelas mãos de Rabbit
Bom dia , gostaria de saber se vocês têm a coquelteira para fazer caipirinha
Bitters: a medida certa de amargor em um coquetel
Mini manual de barismo para bartenders – parte II
Envelhecimento dos destilados: como e por que é feito? – Parte 1