⍟ É preciso pensar fora da caixa para perceber que algumas coisas não são realmente necessárias dentro do drink para fazer com que ele seja bom e que outras coisas acabam se tornando um estorvo para que o drink seja excelente
Publicado em 06 de abril de 2018, às 12h.
Beber é inato. O ser humano tem necessidade de ingerir líquidos para repor a quantidade perdida ao longo do dia. Um ser humano consegue sobreviver por cerca de um mês sem alimentos, mas a partir do sétimo dia sem água, a falência do organismo é certa.
Desde os tempos mais remotos, a humanidade buscou maneiras de levar o líquido à boca. Aqui, então, já identificamos um case de design: um problema – transportar o líquido de modo a tornar possível bebê-lo. Solução: criar recipientes para viabilizar o ato.
É certo que, de modo até instintivo, podemos nos valer dos recursos mais primitivos, como usar as próprias mãos em forma de concha, para beber qualquer coisa na ausência de um copo. A ideia de recipiente independe de fatores estéticos. Em programas de sobreviventes, vemos o atender da necessidade reduzido à circunstância. Além de conchas com as mãos, cocos e até folhas são usadas como copo.
Isto deve servir como um pontapé para a reflexão a seguir: além do líquido mesmo e de um recipiente, o que mais é realmente necessário para consumi-lo?
MUNDO DOS PLÁSTICOS
A coquetelaria ao longo do século 20 foi responsável por criar monstros na coquetelaria (no mau sentido). Quem dos tempos de antanho julgaria sensato mergulhar certas coisas dentro de um copo com o líquido que se está consumindo?
Ora, a culinária mesmo está um pouco à frente neste conceito. Nunca veremos um prato decorado com flores de plástico. E por que isto? Porque tudo o que está no prato, imagina-se, está apto para o consumo. Mas quem nunca comeu um bife a rolê, por exemplo, e fez a desagradável descoberta de um palito já quase atravessado na garganta?
Normalizou-se a ideia de que seja bacana ‘enfirular’ o copo ou a taça com uma imensa gama de objetos decorativos ou nem isso, simplesmente sem beleza ou função alguma.
Vejamos: que faz um guarda-chuva em miniatura dentro de um cocktail? Que faz um canudo plástico em um drink que poderia ser bebido sem qualquer prejuízo diretamente na borda do copo? Que faz um palito espetado naquela guarnição que nem a segura na borda do copo e nem ajuda a pescá-la do fundo? Um mexedor/canudo preto entrecortando o copo? Muitas destas inserções são feitas como que por impulso. Mas, como tudo na vida, não seria bom que fosse discernido antes de feito?
TODA REGRA TEM EXCEÇÕES
Ponderado o uso e, se mesmo assim, conscientemente optar-se por utilizar algo não-necessário ou não comestível na criação, então que, no mínimo, seja feito com critério. E que seja justificável. Usar tal coisa porque é bonita também não parece boa justificativa.
De modo especial, seria interessante fazer o tal objeto se destacar de modo a nunca ser confundido com um objeto comestível. Ninguém quer colocar a Manobra de Heimlich em prática entre a preparação de um drink e outro, não é mesmo?
Quando algo é feito com um propósito, cria-se uma exceção. Usando o exemplo da imagem da capa desta matéria: qual a função de um guarda-chuva oriental em um drink tropical? Se a intenção é evocar a época em que isto era uma moda, considerando o universo estético a que isto pertence, e, na medida do possível, justificando seu uso no storytelling da criação, o que sem propósito seria abominável pode se tornar algo ‘ok’ ou até mesmo algo muito legal.
Uma destas exceções pôde ser vista nas eliminatórias do Chivas Masters no Golfo, onde um dos competidores utilizou uma decoração (não garnish, não pairing) para enfeitar o cocktail. Você confere o resultado na imagem ao lado.
Também vale citar que no serviço de alguns drinks, mormente aqueles montados, é tradição oferecer um mexedor. Não estamos falando desse negócio feio aqui:
Hoje em dia há facilidade em encontrar lugares que fabriquem mexedores personalizados que, mais que a função de mexer o drink, servem também para dar um toque de glamour na apresentação. Certo é que em alguns estabelecimentos é coisa impossível investir muito em mexedores, porque é um dos souvenirs de bar que mais fazem os olhos dos clientes brilharem, além de caberem muito bem no bolso. Antes de prosseguirmos, contemplemos estas pequenas obras de arte feitas em cobre:
CANUDOS
Os primeiros foram usados pelos sumérios. Sua função estava bem distante do uso decorativo. O canudo, em sua concepção, tinha um sentido bastante prático: penetrar a camada superficial das bebidas fermentadas ou infusionadas com floculação para alcançar a parte líquida. Naquela época, os fermentados e bebidas infusionadas não costumavam ser filtrados. Eram, então, servidos de forma integral. A cerveja, por exemplo, não tinha a aparência que conhecemos hoje, mas seu produto final incluía a parte líquida e a sólida, que continha o bagaço dos grãos, o mosto e as outras impurezas. Aí faz bastante sentido um canudo.
Para tornar ainda mais efetivo o uso, algumas culturas começaram a inserir filtros nas extremidades do canudo para evitar que fosse sorvida a parte sólida que não se encontrasse na superfície. Ainda hoje encontramos exemplares deste tipo de canudo na cuia do chimarrão e do tererê.
Manter o insumo sólido na bebida no momento de servi-la pode parecer preguiça ou imperícia, mas a prática servia para que fossem extraídas as suas propriedades até o último momento antes do consumo.
Já no século XIX, americanos utilizavam canudos metálicos para consumir os juleps.
As bebidas geladas eram inimagináveis à época e só começaram a ser cogitadas a partir da invenção do refrigerador, por volta de 1860. Como se pode imaginar, o gelo britado do julep e o resfriamento em caneca de cobre no calor do sul dos Estados Unidos, sem dúvida, era uma experiência que beirava o choque térmico – principalmente para bebedores com dentes sensíveis por causa de falta de higiene bucal, coisa muito comum naquela época. O canudo, então, servia para impedir que o beiço do consumidor fosse congelado quando em contato com a caneca ou o gelo.
Naquela época também tornou-se usual reter o gelo com uma pequena peneira metálica para que ele não entrasse em contato direto com a boca, pelo mesmo motivo. Esta peneira é utilizada na coquetelaria até os dias de hoje, embora com outra finalidade. A quem ainda não a tenha identificado, resta dizer seu nome: julep.
Tendo em vista a importância da conservação dos oceanos e de sua biodiversidade, o canudo vem sendo abolido progressivamente dos balcões ao redor do mundo. Estados norte-americanos, bares dentro e fora do Brasil e até grandes empresas de bebidas tem trabalhado pela redução de lixo plástico nos estabelecimentos – tomando como base a ideia de que os drinks podem sim ser consumidos sem eles. Sem os canudos, ganha-se em redução de lixo e em experiência com o cocktail, que ofertará mais aromas se tomado sem a ferramenta. Recentemente falamos sobre o projeto de eliminação do uso de canudos no bar promovido pela Pernod Ricard. A matéria você pode conferir clicando aqui.
A saída é investir em canudos que não sejam descartáveis, como as bombas de chimarrão citadas acima, canudos metálicos, bambu, papel e até mesmo experimentar devolver a função original ao julep strainer em algumas criações…
O AZUL NÃO EXISTE NA NATUREZA
(Alerta de spoiler: momento polêmico)
Já que estamos falando sobre coisas que podem ficar fora do drink, é interessante fazer um pequeno adendo: à exceção de um ou dois raríssimos casos, todo tipo de objeto com a tonalidade azul contém corante que provém de um processo inorgânico, sintético, artificial. Isto se dá porque a cor azul normalmente não pode ser extraída por processo natural de qualquer coisa encontrada na natureza em larga escala. Ele se dá por meio da sintetização laboratorial do carvão de alcatrão. O que significa que, toda vez que você pega aquela garrafa com licor de laranja azul mais ou menos barato da prateleira, está enfiando elementos artificiais para dentro do seu cliente.
O ser humano tem uma repelência natural à ingestão de alimentos na cor azul, talvez por instinto adquirido dos antepassados, que não punham na boca o que não parecia comida. Isto livrou muitas vezes nossos ancestrais de casos de envenenamento ou engasgue. O instinto de sobrevivência parecia bem claro. Contudo, volta e meia, torna-se pública alguma receita de ditos “especialistas” que criam cocktails com 40, 50 e até 60 ml de curaçao blue em sua composição. Não precisa ser médico para, além de notar que é artificial, contar lento até 10 para diagnosticar uma hiperglicemia ou diabetes no cliente que consome curaçao desta forma. A quantidade de açúcar na receita deste licor é astronômica e, por isso tudo, ele deveria ser utilizado com cautela.
A verdade é dura, mas a era do curaçao blue ‘fortão’ parece estar chegando a seu ocaso. Isto não significa a sua eliminação completa: 10 ou 15 ml de vez em quando cumprem o propósito de dar a qualquer cocktail tanto a tonalidade quanto o sabor deste queridinho. Se a intenção é mais dar sabor do que cor, há uma infinidade de variedades de triple-sécs, entre eles, o próprio curaçao, em versão transparente. E se a intenção é simplesmente deixar o drink azul, pense bem se é com o curaçao que isso deve ser feito. O gradual abandono do triple-séc na coquetelaria internacional é uma realidade suficiente para refletirmos se a nossa próxima criação vai ter a cara do Blue Man Group.
Ainda sobre a cor do curaçao, podemos criar uma ‘regrinha’ que é mais ou menos a reiteração do que já foi dito um pouco acima: não coloque no copo algo que não pareça alimento. Este tom lembra várias coisas: enxaguante bucal, desinfetante e limpador de gordura de fogão, entre outras coisas. Agora pense em alguma comida bem gostosa com a cor azul. Pois é, não tem.
TENDÊNCIAS DA COQUETELARIA
Cada vez mais a coquetelaria se projeta para fora do copo. Isso não significa que um dia até mesmo o drink chegará a ser servido ao lado de um copo vazio e não dentro dele. Mas é possível observar uma mudança progressiva na cultura do serviço. Os garnishes têm sido excluídos ou tomam outras formas, como o pairing. A tendência é fazer com que a apresentação do cocktail não se resuma ao copo.
Em campeonatos, é crescente o uso de uma plataforma sob o drink – uma superfície como uma bandeja ou uma pedra – que serve também como suporte para outros insumos acessórios. Algumas vezes são comestíveis, em outras evocam sentidos, como o olfato, a visão e o tato. A multisensorialidade têm invadido com força o mundo do bar.
Vez ou outra o cocktail aparece sozinho, como rei no serviço, acompanhado de um séquito de insumos que o rodeiam. Mas, diante de toda esta inovação, praticamente não se percebe o uso de elementos meramente visuais, sobretudo artificiais (girafa em miniatura é um caso à parte). Este emprego deve ser realmente muito criterioso e justificado.
Não estamos aqui para pontificar sobre qualquer assunto e nem para tolher a criatividade alheia, mas temos certeza que voltar os olhares para estas coisas que deixamos passar porque tornaram-se práticas autômatas e sem sentido pode ser um ótimo exercício de ‘limpar o terreno’. Dessa forma, a coquetelaria pode ter um espaço um pouco mais amplo e sem estorvos para acolher as novidades e tendências que chegam com força.
4 commentsOn Para refletir antes de colocar algumas coisas no copo
Parabéns pela matéria. Realmente muitas coisas ditas aqui ainda são elaboradas de forma errada pelo profissional de bar. Gostei de muitas dicas.
Eu gosto decfazer drinks, sempre gostei. Vai da minha cabeça e da minga criatividade.
Uns dão errado e muitos dão certo… é sempre um aprimoramento e descobertas.
Ver alguém mais à frente é sempre muito bom.
Parabéns aí rapaziada.
Hoje em dia com esta Mania furtiva de enfeitar os drinques perdeu-se a boa e velha forma de se servir.bastam uma mistura de bebidas e ou frutas . Um copo apropriado so.sejam bem vindos e aproveitem a noite
Não que eu seja a favor de canudos de plástico ou beber água com guarda chuva de papel… mas é impressionante como o nível de argumentação de algumas pessoas beira o absolutismo, quando um autor escreve que ninguem precisa beber alguma coisa com guarda chuva, ou mesmo porque o azul, não é natural, esquece do simples fato que álcool é um fermentado produzido artificialmente e beber álcool também não é uma necessidade e nem natural, com argumentos desse melhor fechar o bar.
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