⍟ Na matéria anterior nós discutimos o contexto e as origens do surgimento da cachaça, agora vamos além: por quê a bebida foi boicotada? Quem ganhava e quem perdia com isso? Por quê sempre foi tratada como uma bebida inferior? Vamos descobrir a seguir!
Na primeira parte da reportagem, trouxemos algumas informações relevantes sobre a história da Cachaça – como suas confusas origens e sua importância econômica para a manutenção do sistema colonial. Explicamos, também, porque é impossível contar a história do Brasil sem citar a bebida e é impossível contar a história da bebida sem se debruçar na história do Brasil. Ambos caminharam lado a lado, confundindo-se, consumindo-se e ajudando-se.
Agora, é hora de continuar do ponto em que paramos. Por quê, em certo momento, Portugal viu a Cachaça como uma ameaça? Por quê sentimos que a bebida nunca alcançou seu máximo potencial econômico? E por que, mesmo contra todas as estatísticas, tornou-se a bebida símbolo de um país?
PORTUGAL X CACHAÇA – UM BRAÇO DE FERRO HISTÓRICO
Como já trazido anteriormente, é complicado filtrar e, especialmente, datar a origem da cachaça. Não se sabe, ao certo, quando ela começou a ser produzida em uma escala suficientemente grande para a exportação. Estudos apontam que isso ocorre na virada do século XVI para o XVII, então iremos trabalhar com essa informação, certo? Dito isso, é possível afirmar que a vida útil da bebida em território brasileiro foi muito curta, por volta de 80 anos – entre descoberta, consumo próprio e manufatura para exportação. No Brasil, e especialmente em Pernambuco e no Rio de Janeiro, a cachaça era consumida, basicamente, entre os escravizados e as camadas mais pobres da sociedade – carregando consigo esse estigma de uma bebida inferior. Porém, o povo gosta do que é bom, seja ele barato, caro, bonito ou feio. E a “marvada” começou a se proliferar.
Em um primeiro momento, a exportação era feita, essencialmente, para a Angola, em uma cadeia de comércio e relações que envolvia a cana, homens e mulheres escravizados e a cachaça. Ao contrário dos outros insumos aqui produzidos, a bebida aqui ficava. E é, fundamentalmente por esse motivo, que os historiadores e pesquisadores tratam a aguardente como um símbolo cultural brasileiro: ela foi descoberta, produzida e consumida aqui.
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Além disso, outro fator fundamental para a cadeia de acontecimentos que se sucedeu foi a expulsão definitiva dos holandeses do território brasileiro, no ano de 1654. A região do Nordeste, de modo particular o Recife e parte do Maranhão, era a maior região produtora de açúcar no Brasil – e, em certos momentos, do mundo. Os holandeses ocuparam, dominaram e potencializaram muito a produção do açúcar em território brasileiro, estabelecendo uma parceria com Portugal. Não era mais necessário exportar o produto para a Europa para que este fosse refinado e, assim, consumido. Tudo era feito nos engenhos nordestinos, sob uma cadeia muito complexa e organizada.
Após a saída da Holanda do território brasileiro quando o Reino de Portugal foi incorporado ao espanhol, os holandeses se alocaram em suas colônias nas Antilhas – que já plantava cana e produzia o açúcar há mais de 100 anos. Com isso, a produção brasileira do açúcar cai exponencialmente – não conseguindo competir com a dos holandeses.
Desse modo, os produtores brasileiros optam por focar, agora, na cachaça. Especializam-se, promovem ajustes nos engenhos e ampliam a estrutura toda – desde a fabricação, passando pelo comércio e pelo consumo individual.
Agora surgiam as chamadas “casas de cozer méis”, como apelidaram as primeiras destilarias da aguardente nacional. Ora, o mosto da cana era doce como mel – e alcoólico. Teria daí surgido o apelido “mé” para a ‘marvada’?
Porém, como o sistema mercantilista era mais primitivo em relação ao capitalismo, pelo menos do ponto de vista do arranjo de produção, a conta parou de fazer tanto sentido para a Coroa. Perto da metade do século XVII, a cachaça já era exportada e se dissipava em território europeu, principalmente em Portugal – e isso se tornou um problema.
O vinho e a bagaceira eram carros chefe da economia lusitana como um todo. E a cachaça chegou chegando como uma bebida inédita, diferente e mais barata. O “estrago” já fora feito e agora Inês é morta. Não haveria o que fazer – a não ser proibir a “branquinha” em Portugal.
A PROIBIÇÃO DA COROA PORTUGUESA
Após muitas reuniões, guerras em palacetes e descontentamento geral, a decisão saiu: à partir de 1659 a cachaça não poderia mais ser fabricada e comercializada em todo território do Império Português e, além disso, todos os alambiques presentes nessas regiões deveriam ser destruídos.
Aqui, chamamos a atenção novamente para um fator curioso: assim como durante a Lei Seca nos EUA, o consumo da bebida não foi proibido, mas sim todos os meios para que se conseguisse, de fato, consumi-la. O real motivo dessas decisões nós não sabemos e, talvez, jamais venhamos a descobrir. Mas é, no mínimo, curioso, o fato de proibições tão incisivas como essas terem feito essa “brecha”.
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Porém, nós também sabemos que o ser humano é rebelde. Bastou algo ser proibido para se tornar desejado. Século XX, XIX, XVIII, XVII…pouco importa. O povo quer a bebida e fará por onde.
A evasão das bebidas para a Angola que havia diminuído, aumentou – e agora em forma de contrabando e tráfico. A cachaça saía do Brasil, viajava até a costa do país africano para, assim, conseguir penetrar em território português e servir os sedentos lusitanos. Ou seja, tudo era proibido, mas tudo permanecia igual. E, principalmente, no Rio de Janeiro.
A REVOLTA DA CACHAÇA
Com a região nordestina ainda tentando se encontrar após a debandada dos holandeses de seu território, serviu para o Rio de Janeiro a função de principal produtor e fornecedor da bebida. Porém, é importante ressaltar de qual “Rio de Janeiro” estamos falando: uma cidade/estado com uma estrutura ainda muito primitiva e totalmente dependente da entrada e saída de produtos do porto do lugar – uma cidade ainda muito distante daquela que veio a se tornar a capital do país.
Assim, a produção foi aumentando exponencialmente – com o Rio de Janeiro comandando essa nova empreitada. Com dezenas e dezenas de engenhos de açúcar em seu território, os seus produtores viram seus lucros crescerem de uma maneira exorbitante – o que começou a chamar a atenção. Por isso, após sentir que a situação poderia sair do controle, a Coroa Portuguesa nomeia Salvador de Sá – um militar português – como governador geral da capitania do Rio de Janeiro. Com o objetivo de fiscalizar com mais afinco os produtos de cana e cachaça fluminenses, além de trazer um militar para o Brasil, impõe uma pomposa taxa de exportação para a cachaça. O resultado? Apenas o aumento do contrabando. O tráfico rumo a Angola aumentou e a bagaceira continuava a ser preterida pela boa e velha cachaça. O ser humano é rebelde, lembram?
E rebelde se rebela. Cansados de serem obrigados a pagar as injustas taxas, de serem injustamente tratados pelo Salvador de Sá e de serem vítimas da injusta proibição de trabalharem, resolveram se posicionar. Organizaram-se minimamente e foram às ruas lutar por seus direitos. Eram produtores, logo, precisavam produzir! Mas a Coroa era contra e tinham no governador geral a figura certa para controlar a situação.
Com ajuda de tropas advindas da Bahia, a aniquilação dos revoltosos não demorou a tardar. Em poucos dias os rebeldes foram capturados, presos e enviados à Portugal ou a África para serem julgados. E como de costume, sobrou para um deles a função de mensageiro da corte: Jerônimo Barbalho foi morto, decapitado e sua cabeça foi colocada no pelourinho.
MORAL DA HISTÓRIA
Leis imorais nascem fadadas ao fracasso. A Lei Seca nos EUA ainda que durou algumas décadas. Em Portugal, não. Menos de dois anos após a proibição, já em 1691, o decreto é derrubado e a fabricação e comércio da Cachaça é liberado. Salvador de Sá foi julgado por seus excessos em solo brasileiro e sua famosa família, Sá, perdeu grande prestígio no país. Os rebeldes que estavam presos foram libertados. E tudo se seguiu como se há pouco menos de duas unidades de ano não tivesse havido uma verdadeira guerra em solo fluminense. Há quem diga que isso é natural, pois, no Brasil…tudo acaba em cachaça!
Porém, um novo século estava chegando e a economia do Brasil já dava sinais de que precisava de um novo regente. E assim como estudamos nas aulas de História do Brasil na escola, é a hora e a vez do Ouro de Minas Gerais ser o grande financiador de toda uma estrutura Afro-Atlântica – baseada na escravidão. A cachaça vai perdendo a força, os engenhos vão se fechando, os produtores vão se tornando mineradores e não se ouve mais tilintares dos copos brindando. Um triste fim para a Cachaça Brasileira?
Leia agora a terceira parte desta série sobre a história da cachaça:
Raízes da Cachaça – Parte 3 – Cachaça Brasileira, sim senhor!
2 commentsOn Raízes da Cachaça – Parte 2 – O apogeu que nunca veio
A CACHAÇA É UMA TRADIÇÃO NACIONAL QUE SERÁ SEMPRE BEM VINDA NAS RODAS DE TPDAS AS CLASSES SOCIAIS.
TODAS.
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