⍟ Muito se fala sobre a Lei Seca nos EUA: seu legado, as referências cinematográficas, os mafiosos famosos. Mas como, de fato, as bebidas sobreviveram a um período de 13 anos de proibição total?
O ser humano é rebelde. Antes de ser um animal político, branco, preto, amarelo, alto, magro, gordo ou magro, é rebelde. Não à toa brincamos que “basta dizer não a uma criança que ela automaticamente quer o sim”. Basta algo ser proibido para que, consciente ou inconscientemente, torne-se desejado por homens e mulheres. Portanto, ao se questionar como as bebidas alcoólicas sobreviveram à Lei Seca nos EUA, é importante entender que você, leitor, é um rebelde por natureza! E, assim, tudo se torna mais fácil.
Antes de qualquer coisa, vamos explicar algumas questões que sempre pairam no ar quando o tema é a polêmica Emenda Constitucional 18 dos EUA. O que, de fato, foi proibido? Por que foi proibido? Por que voltaram atrás?
O QUE DIZIA A EMENDA CONSTITUCIONAL NÚMERO 18
“Um ano depois da ratificação deste artigo serão proibidos pelo presente artigo o fabrico, venda ou transporte de licores embriagantes dentro dos Estados Unidos e de todos os territórios submetidos à sua jurisdição, bem como a sua importação para os mesmos.”
E aqui, na realidade, já nasce a primeira problemática. Não pode se negar que é, no mínimo, curioso o fato de o consumo de “licores embriagantes” não tenha sido banido, mas apenas a fabricação, o comércio e o transporte em território nacional. É verdade, também, que sem essas etapas de produção, o consumo seria praticamente impossível. Mas não deixa de chamar a atenção o fato de que uma Emenda Constitucional tão importante e relevante tenha deixado essa brecha. Um acidente de percurso ou uma falha estrategicamente pensada?
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POR QUAIS MOTIVOS O ÁLCOOL FOI PROIBIDO NOS EUA
É um erro pensar que a Lei Seca nos EUA começou do dia para a noite. Até porque, a Emenda que promulgava a proibição foi feita em 1919 e posta em prática apenas um ano depois, em 1920. Além disso, os Estados Unidos da América já apresentavam indícios dessa cultura desde antes o seu processo de Independência. Exemplos como os estados de Massachusetts, que, em 1657, tornou ilegal a venda e consumo de bebidas alcoólicas como Rum, Uísque, Vinho, Conhaque, entre outros; bem como o estado do Kansas que, em 1881, proibiu totalmente a fabricação e o consumo de bebidas alcoólicas em seu território
Partidos políticos foram fundados, associações civis formadas e a pressão pela condenação oficial do álcool aumentava cada vez mais. Assim, à semelhança do contexto histórico presente, na virada dos séculos XIX e XX, grupos interpretaram dados científicos de maneira positivista e equivocada para comprovar teorias que já nasceram tortas. A alegação para a proibição baseava-se na ideia de que um país abstêmio e longe do álcool poderia ter maior controle sobre questões éticas e morais, como a violência civil, a alta da criminalidade e o alto desemprego. E, assim foi: em janeiro de 1920, toda e qualquer produção, fabricação ou transporte de bebidas alcoólicas em território norte-americano estava terminantemente proibido.
A “CONTRACULTURA” DA PROIBIÇÃO
O “crime organizado” não possui esse nome por acaso. Para que ele sobreviva, é necessária uma estrutura pensada, cadeias de ordenações bem decididas e uma sistematização de decisões quase automáticas. Falar em crime organizado nos EUA sem citar as gangues de mafiosos ítalo-americanos é um erro crasso. Desde a chegada dos primeiros imigrantes italianos em território norte-americano, ainda no século XIX, vê-se uma verdadeira emulação das “Famiglias” e uma extensão do território do sul da Itália, como Sicília e Amalfi.
O crime organizado trabalhava, basicamente, com tudo o que é ilícito, tendo o tráfico de drogas e a prostituição como suas maiores fontes de renda na época. Ademais, trazendo esse conhecimento de redes, rotas e mercados de seu cartel anterior, o tráfico de bebidas alcoólicas foi facilmente escolhido como o próximo empreendimento.
Assim, logo se iniciou uma era de locais e bares secretos, os famosos Speakeasies (fale baixo, em inglês), que funcionavam a todo vapor em todo solo norte-americano. Esses estabelecimentos, se não controlados pela própria máfia, possuíam uma verdadeira relação de dependência.
O crime organizado importava a bebida – a partir de certo momento, começou, também, a produzir –, transportava pelas estradas do país e vendia para os bares para que estes pudessem comercializar para os civis.
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A ERA DAS FABRICAÇÕES AMADORAS
A proibição começou a se alongar por mais tempo do que esperavam, e o processo todo de importação começou a não fazer mais sentido. Eis que um pensamento começou a se difundir: “E se as próprias gangues fabricassem as bebidas?” Oras, todos os custos cairiam, o lucro aumentaria e não haveria controle de qualidade, e bebidas de procedência muito duvidosa seriam aceitas porque apenas fazia questão de beber sem levar em conta a qualidade. Era o cenário perfeito e os comerciantes ilegais não demoraram para enxergar isso.
Deste modo, se iniciou uma era de desespero. Em situações desesperadoras, decisões desesperadas são tomadas. Uma delas foi a produção de bebidas alcoólicas “falsificadas” ou amadoras, manufaturadas em condições precárias, com ingredientes rudimentares. Um exemplo perfeito para essa movimentação é o famoso “bathtub gin”: variantes do gin com misturas de diversos cereais – principalmente o milho, por ser uma commodity de grande proliferação nos EUA.
Sendo fabricado em grande escala, os bathtub gins eram produzidos com combinações dos mais variados componentes com pouco critério de seleção, em fábricas primárias e em recipientes enormes de metal e até mesmo banheiras – o que deu origem ao nome –, com técnicas pouco seguras e corte feito ‘a olho’, diferentemente da usual produção com padrões mínimos de qualidade. Assim, teve grande e fácil entrada entre os civis, logo se popularizando e fazendo valer a lei da oferta e procura.
Porém, não é uma surpresa que os bathub gin trouxessem mais malefícios do que benefícios. Aliando as más propriedades de seus ingredientes principais com um alto consumo, o resultado não foi positivo, é claro. E agora, além de o Estado ter de lidar com o contrabando, teria que lidar com as consequências diretas no campo da saúde que ele trazia para a sociedade.
Outro fator não surpreendente mas ainda sim impactante para entender o que, de fato, foi a Lei Seca nos EUA é o número de speakeasies presentes só na cidade de Nova York no ano de 1929: 32 mil bares. Assim fica mais fácil entender o poderio das máfias e o real problema de fiscalização que o Estado enfrentava, não? Haja subornos para que todos os bares conseguissem funcionar!
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O ‘USO MEDICINAL’ DO ÁLCOOL
Além de rebelde, sabemos que o ser humano é muito malandro. Se algo lhe é barrado ou censurado, vai arranjar alguma maneira de conseguir – custe o que custar! Com o álcool não foi diferente. Bares clandestinos, bebidas falsificadas…tudo isso já era feito, consumido, sabido. Os norte-americanos precisavam de mais… e acharam, da maneira mais inusitada possível: a medicina.
Uma das poucas possibilidades para se consumir álcool de forma legal era encontrar um médico que receitasse medicamentos com bebidas alcoólicas para tratar alguma doença, geralmente fictícia. Whisky, rum, vodka e gin eram alguns dos ‘remédios’ mais receitados. As classes menos favorecidas se valiam dos ‘bathtub gins’. Os mais abastados tinham condições de pagar consultas para obter essas receitas e, então, adquiriam os tais ‘medicamentos’ com as bênçãos da brecha na lei.
Para este tipo de engodo também as garrafas de bebidas ganharam formatos mais semelhantes aos de frascos de remédios. Afinal, era preciso que o teatro fosse completo. Isto alimentava cada vez mais o cenário da corrupção, tornando o país como uma rede desencadeadora de pequenos delitos para que a macroestrutura do crime organizado funcionasse a todo vapor.
E tudo isso é mais uma prova de que a Prohibition acentuou, além da vontade de consumir o álcool, a criatividade do cidadão dos EUA. Burlava-se a lei das mais diversas maneiras, formas ou técnicas e, de certa forma, isso era de conhecimento do governo e levava sua chancela.
POR QUE A PROIBIÇÃO DEU ERRADO?
Uma coisa é fato: a Lei Seca, definitivamente, não deu certo. Além de não ter conseguido diminuir significativamente o consumo de bebidas alcóolicas (a diminuição ficou na casa dos 20%), viu outros problemas nascerem – e, ainda, decorrentes diretos da Emenda Constitucional 18. Se os adeptos e simpatizantes da Lei diziam que o álcool aumentava e potencializava os índices de criminalidade, eles não estavam errados. Porém, há uma ironia aqui, visto que a Prohibition aumentou a criminalidade em todo o país e, ainda por cima, viu a Máfia e as gangues se tornarem verdadeiras organizações estruturadas – a ponto de construírem cidades no meio do deserto e irem parar em Hollywood. Mas, outro ponto que gostaríamos de discutir a seguir possui relação com a abertura da matéria: a rebeldia. O ato de rebelar-se está, psicologicamente falando, ligado à vaidade, à carência e à necessidade de chamar atenção. Consumir álcool durante os anos de 1920 e 1933 tornou-se cool, descolado, fetichizado.
Os EUA na década de 20 enfrentaram problemas civis e governamentais gigantes, culminando na famosa Queda da Bolsa de Nova York, em 1929, fazendo com que a pressão social por mudanças aumentasse exponencialmente. Portanto, ser contra o governo e praticar atos de ilegalidade tornou-se um dilema moral.
As pessoas sabiam que estavam cometendo uma infração penal, mas não se sentiam criminosas. E isso é um precedente muito perigoso. A bebida virou um fetiche – algo visto até os dias de hoje, com garrafas de destilarias da época sendo altamente procuradas e vendidas à preço de ouro.
O LEGADO E O FENÔMENO CULTURAL
Dito tudo isso, esperamos que a pergunta inicial tenha sido respondida.
Não é fácil estudar períodos históricos fechados, pois muita coisa precisou acontecer anteriormente – tanto no âmbito populacional quanto governamental – para que chegasse em um ponto de ruptura dessa magnitude. E que magnitude! Só a partir da Lei Seca vimos o nascimento da lenda de Al Capone e o poderio da Chicago Outfit; as primeiras movimentações da Máfia para que chegassem no patamar que alcançaram nos anos seguintes; a popularização dos bares secretos – em moda até os dias atuais; e, para terminar, vimos a única vez na história dos Estados Unidos da América que uma Emenda Constitucional foi revogada por outra Emenda.
É preciso ser dito: as bebidas sobreviveram porque o povo sobreviveu, e se algo é da vontade do povo… um brinde!
O excesso de bebidas, assim como a falta, pode causar uma série de problemas sociais. Veja o que aconteceu na Inglaterra quando o gin tornou-se um epidemia:
Gin Craze: A loucura do gin na Inglaterra dos séculos XVII e XVIII