Mayflower na Baía de Plymouth, por William Halsall (1882)
⍟ Você já parou para pensar de onde vem o costume de “tomar uma” depois de um dia cansativo de trabalho? Ou já imaginou o trajeto que uma garrafa de rum precisou fazer para chegar à sua mesa? O caminho foi longo e você pode descobrir isso agora.
O consumo de bebidas alcoólicas para a História está tão próximo de nós, seres humanos do século XXI, como as Pirâmides do Egito e o Coliseu. Sabe-se que a extinta civilização africana produzia e consumia cerveja desde muito antes do que podemos imaginar. Povos ameríndios, vikings, romanos… todos consumidores de álcool. Mas, o que transformou o consumo individual de uma taça de vinho ou um copo de cerveja em um mercado poderoso e representativo? Quem fez com que a variedade etílica se expressasse de diversas maneiras diferente? É o que vamos conhecer hoje.
Quando o navio Mayflower zarpou da Inglaterra rumo às Américas, não eram só os primeiros habitantes do que viriam a ser os Estados Unidos que chegaram por lá. Junto aos famosos “peregrinos”, desembarcaram duas das maiores características da cultura anglo-saxã: o tato com as bebidas alcoólicas e o poderio comercial emaranhado em seu povo.
POR QUE TANTO MARINHEIRO NO MUNDO?
Mas, antes de se aventurar por terras inabitadas, vamos voltar algumas casinhas. Para compreender a influência dos marinheiros no consumo de bebida alcoólica no mundo terrestre, é preciso entender, afinal, o porquê de naquela época ter tantos marinheiros no mundo. E é uma questão simples, até: o comércio marítimo foi a força motriz de toda e qualquer grande civilização humana até o século XX. E é aqui que entra a Inglaterra. Por mais que aprendamos na escola que Espanha e Portugal dominaram a chamada “Era das Grandes Navegações” com o Tratado de Tordesilhas, é um equívoco pensar que os britânicos estavam por baixo. Pelo contrário! Estavam por cima e pelos lados, do Oriente ao Ocidente, da Índia às Américas.
E, se o comércio marítimo era dominante no mundo, as cidades litorâneas eram a prova de seu poderio. Verdadeiros centros sociais, econômicos e culturais, estes locais serviam como intercâmbio e troca das mais diversas possibilidades e oportunidades. Desde as mais óbvias, como a língua e o escambo, mas também hábitos e costumes dos mais diferentes povos e etnias. Os civis ensinavam aos marinheiros e os marinheiros ensinavam aos civis: o mais puro e simples significado de troca.
COSTUMES, HÁBITOS E COMPORTAMENTOS: OS MARINHEIROS DOS SÉCULOS XVI E XVII
Você pode estar se perguntando aí: o que aqueles marinheiros sujos, sem dentes, sem olhos e pernetas teriam a oferecer a qualquer pessoa? Histórias de monstros gigantes? Lendas dos sete mares? Até pode ser que sim. Mas você sabe aonde queremos chegar: os marinheiros ensinaram os civis a beber. Rum, vinho, aguardente…aqueles homens dominavam a arte de navegar e de embriagar-se. E é como o ditado diz: “Nenhuma boa história começa com “um dia eu estava comendo uma salada…”
A lenda de Moby Dick até pegou, é verdade. Mas é difícil competir com um copo de bebida, né? Na Inglaterra do século XVIII o consumo de gin tomou proporções inimagináveis até então. Valendo-se de ser boa e barata, a bebida se proliferou com tamanha força nas entranhas da população que, em certo momento, o Parlamento britânico promulgou leis e emendas para combater o consumo de gin pelo povo – que beirava os 568ml per capita semanalmente. Na Holanda, França, ou o que veio a ser a Alemanha, não foi diferente. A explosão dos destilados, a partir do século XVII, mexeu com a estrutura dos países. Eram tempos difíceis, vivia-se o início da era industrial e as primeiras aglomerações urbanas como conhecemos hoje. Os cidadãos exigiam melhores condições de vida e a bebida estava ligada a isso. E, quem seria capaz de garantir ao povo o que é do povo? Os comerciantes marítimos, mais conhecidos como marinheiros.
E continuou sendo uma troca. Cedia um pouco de um lado para garantir melhorias do outro. Assim mesmo foi também com a bebida. Ora era a ‘cura’, ora a ‘doença’. As bebidas alcoólicas sempre fluíram de acordo com as ondas do mar. Se podia vender, a maré era cheia. Se proibia o consumo, maré baixa.
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O RUM E O GIN: ‘CURAS’ OU ‘DOENÇAS’?
Mas a verdade é que falar de marinheiro e viagens marítimas é falar de rum. “A bebida dos piratas”, como até hoje é conhecida, também fazia parte da dieta essencial de toda tripulação de qualquer navio. Advindo da cana-de-açúcar e do melaço extraído dela, o rum fazia com que novas relações comerciais fossem formadas, principalmente na região da América do Sul e do Caribe, com Brasil e Cuba sendo seus maiores exportadores.
Além disso, a partir desse ponto fica ainda mais claro o aspecto cíclico que o comércio marítimo possui. Um ciclo de países, de rotas, de produtos, de dinheiro. A Inglaterra precisava das Américas, como a Índia precisava da Inglaterra, como a América precisava das Índias. O rum precisava do melaço, como os elixires que salvavam de doenças terríveis precisavam da quinina, como os marinheiros precisavam de ambas para aguentar as longas jornadas as quais eram obrigados a enfrentar. Desse modo, a bebida não carregava consigo apenas seu caráter social, mas sim de sobrevivência. Nos dias atuais, sabemos que o consumo exagerado leva a doenças sérias ou ao vício. Mas, naquele tempo, muita coisa era desconhecida e a bebida preenchia um vazio muito perigoso e complexo.
ESCORBUTO
E por falar em perigo, vamos a a ele. Sendo comumente chamado de “a doença dos marinheiros”, o escorbuto matou por volta de 2 milhões de marinheiros ao longo de apenas dois séculos. Mas é um daqueles casos em que a desinformação foi a maior culpada. O escorbuto nunca foi um problema direto da navegação, mas sim da alimentação oferecida a esses homens. Causada pela falta de Vitamina C no corpo, ele é “curado” apenas com a inserção de frutas cítricas em sua dieta – algo que estava muito distante da rotina alimentícia das tripulações dos navios.
Apenas no século XVIII se tem a primeira notícia de um capitão que lutou pela saúde de seus subordinados. Edward Vernon (1684-1757), almirante inglês com diversas campanhas ao longo do mundo pelo Império Britânico. Vernon é mais conhecido por sua contribuição no mundo da coquetelaria – mesmo sem ter tido tal intenção – ao diluir o rum em água em seus navios. Mas qual o ganho disso? Além de algo simples, como a maior duração da bebida, a água trazia sais minerais que combatiam certos malefícios causados pela maneira com que o líquido era armazenado – em barris de madeira que, com muita facilidade, acumulavam limo e outros intempéries. E a essa nova mistura foi dado o famoso nome ‘grog’, em homenagem ao próprio Edward, que era conhecido como “The Old Grog”.
MALÁRIA
E ainda no campo da saúde, também podemos citar esta doença causada pelo protozoário Plasmodium e transmitida pela fêmea do mosquito de gênero Anopheles. A malária é muito presente em regiões muito quentes e subdesenvolvidas – como a África, Índia e alguns lugares da América Latina. E nos séculos XVII e XVIII houve uma verdadeira crise sanitária no que então era conhecida como Companhia Britânica das Índias Orientais e mais posteriormente Índia Britânica causada pela malária. E no meio de todo esse caos novamente vamos citar uma bebida.
Uma das decisões tomadas pelo Império Britânico para proteger seus colonos era a de obrigar o consumo do quinina, substância extraída da semente do zimbro, encontrado na América. Mas, por ser extremamente amarga e difícil de ser ingerida, os soldados começaram a misturar com o bom e usual gin, criando, assim, um drink que é tomado até os dias de hoje e a cura para a malária.
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A bem da verdade, a quinina foi uma grande heroína em outro caso grave da saúde mundial. Além da linha de frente do combate à malária, onde é o principal remédio até hoje, ela esteve também presente durante a gripe espanhola e, mais recentemente, ressurgiu em um debate sobre sua eficácia no combate à pandemia do novo coronavírus.
O CICLO DA BEBIDA E SUA TRAJETÓRIA NA HISTÓRIA ATÉ O SEU COPO
Ao narrar todos esses episódios, o objetivo era apenas um: mostrar como o consumo de bebidas alcoólicas está intimamente ligado a História da Civilização Humana. Ora como doença, ora apresentada como cura, o álcool esteve e está presente nos maiores momentos de nossa narrativa. E, se lá no começo, nós trouxemos a importância dos marinheiros para que o consumo de bebidas fosse banalizado, a problemática agora traz dois pontos: a influência direta e a indireta.
A influência direta baseia-se na premissa de que a troca de costumes e produtos que acontecia nas cidades litorâneas e portuárias abriu margem para a entrada em todo o resto do continente. Sendo vistos como sujos – nas histórias de piratas e contrabando – ou como heróis – nas poesias de Luís de Camões, “Os Lusíadas” – esses homens, na realidade, sofreram com as condições de vida que enfrentavam e viam na bebida um alento – mesmo sem levarem em conta que, uma hora, este alento poderia matá-los.
A influência indireta é baseada na história que não é contada, que está nas entrelinhas ou até mesmo escondida. Se houve em algum momento um domínio holandês dos mares, foi porque holandeses arriscaram suas vidas em navios; se houve domínio inglês no comércio marítimo, foi porque homens ingleses enfrentaram situações completamente adversas nos mares para enriquecer outros que não enfrentavam situações tão adversas assim. O mundo foi construído pelas mãos de marujos desconhecidos que influenciaram a maneira como vivemos hoje.
Assim, as bebidas trazem em seu gosto, em seu processo de destilação e em seu ritual de consumo traços e particularidades de cada elemento presente em si: a acidez tropical, a amargura europeia, a picância da Ásia e África… notas de sabores e aromas de todo o trajeto que precisou ser feito para chegarem, um dia, dentro do seu copo.
Vamos um pouco mais adiante na história para conhecer um outro momento marcante que envolve bebidas alcoólicas:
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